sábado, 20 de fevereiro de 2010

Um breve Príncipe



Domingo é acaso. Ladeira acima e lá vai Maria, com olhos imprecisos e passo calmo. Chega, se deita, brinca, ri, e logo, quase de repente, se deprime e chora. Volta cansada. Se alguém a pergunta de quê, prontamente tem uma resposta armada. No caminho que faz diariamente, se depara com sucessivos miados, procura e encontra: é um gato, tão pequenino que cabe na palma da mão. Incomodada com seus gritos e percebendo que ele está abandonado num terreno baldio, resgata-o. Contam algumas pessoas que ali estavam, que ela saiu dali já apaixonada, levando-o junto ao seu corpo e fazendo dengo como se em seus braços acabara de segurar um filho agora nascido.

Chega a casa em que trabalha e mora e é imediatamente sacudida pela ira de Senhora que não quer mais um felino sujando seu chão e seus caros sofás. Embora, a dona do lar já tenha alguns animais destes fazendo o que este novo não poderá fazer. Para não perder o emprego nem para não jogá-lo na rua, promete que Príncipe [era assim que Maria o chamava] não iria dar trabalho e que qualquer sujeira seria de pronto asseada e desinfetada. Como ele não parava de chorar e pouco se alimentava, ela se viu obrigada a dormir com ele agarrado ao peito.

No meio da noite vinham os sobressaltos, e de maneira intempestiva ele começou a sujar lençol, fronha e o chão. Maria não mais dormiu, percebeu naquele instante que Príncipe não era de todo saudável. E isso a entristeceu, como asas quebradas que nos impede de voar. É cedo, portanto, hora de levantar, e a mulher vendo aquele quarto todo fétido e lambuzado, leva-o dali enquanto Maria se atarefa com seus afazeres. De pronto sente a falta do Príncipe, procura-o e não o encontra, sai na rua com o coração disparado e as mãos geladas [afinal, é costumeiro seu mundo desabar e suas cansadas mãos e seu afilado nariz ganharem temperatura fria, como se tivessem saídos de um freezer], chamando-o e rogando a Deus para que possa mais uma vez abraçá-lo.

Depois de sua caminhada matinal a mulher chega e Maria pergunta onde foi que o colocou, e sem muitos rodeios responde que o tinha deixado em uma casa velha, onde continha ali muitos gatos. Maria já tinha ido até lá e também já tinha rodado todo o quarteirão e nada tinha visto, mas foi novamente à procura. Chegando à casa indicada, perguntou a uma mulher que atende por Norata, se por acaso tinha se deparado com um gatinho, de pêlo mariscado, magrinho e de olhos profundos e tristes. A resposta foi não. Então, seus olhos começaram a destilar águas. Como procurou e chorou Maria! Ansiosa caminhava, mas seus pés não chegavam a tocar o chão.

Voltou para a labuta sem conter suas lágrimas sofridas e envolvida em seus soluços abafados. De súbito chega Norata, e pergunta se o gato que estava procurando era aquele (levantando-o para que Maria pudesse ver) e tonta de felicidade responde que SIM. Ela conta que o achou longe dali quando estava voltando da padaria com os pães. Então, a dona da casa vem e pergunta se por um acaso aquela senhora não poderia criar aquele gato, e que se a resposta fosse positiva não se preocupasse com a ração, pois isso ficaria por sua conta. Não sei se por piedade ou para não desagradar à respectiva senhora responde com um aceno de cabeça que poderia.

Logo é levado para casa velha, com um litro de leite e um saquinho de ração em uma das mãos, e Príncipe em outra. Um misto de emoções tomou conta de Maria. Às vezes parecia uma borboleta embriagada com o cheiro das flores e, logo em seguida, ficava chorosa como num intervalo que não se estabelece o tempo em segundos. Pensava que agora ele teria um lar e se alegrava, pensava na distância entre os dois e se entristecia. Mas a vida precisa seguir, e assim Maria fez: voltou ao trabalho, aos jogos na folga e aos amores noturnos.

Mas sempre que passava por ali era inevitável não ir ao encontro de Príncipe, pegava-o e olhava seu estado. Nunca gostava do que via, ele continuava sem brincar e com mais força seus olhos tristes a encarava. Decidiu que sempre ao meio-dia iria pessoalmente alimentá-lo. Quando chegava com o leite ele bebia tão descompassadamente e tão ávido de fome que ela se perguntou se estavam mesmo a nutri-lo. Percebeu também que ele estava tomado de pulgas e devido a uma constante disenteria alguns bichos começavam a tomar conta do seu corpo. Ela o levou para dar banho, e Senhora ficou gritando e dizendo para não fazer imundices no muro. Mas ela que já não ouvia nada, deu banho com creme (pois de tão nervosa, ao invés de pegar o xampu pegou um creme de pele) e retirou as pulgas que estavam sugando todo o seu sangue. Quando estava embrulhando-o por causa do frio ela pensou que ele iria morrer, tal qual era a sua fragilidade naquele momento. Cumprida a missão, abalada, voltou a entregar na casa velha o gatinho mais doce que já teve oportunidade de conhecer.

Aquilo não saia de sua cabeça. No dia seguinte voltou no mesmo horário de costume, e ali estava ele: sujo e abatido. Levou-o novamente e fez o mesmo processo do dia anterior, mas agora com a complacência da sua senhora. Vendo aquela situação, a senhora pediu para que o deixasse ali, que a partir de então iria cuidar dele também. Como o coração e o sorriso de Maria se abriram! Era como se sua fortuna e glória estivessem subentendida naquele espaço.

As duas insistiam para que Príncipe comesse, mas sempre comia pouquinho e com dificuldade. Sempre que se sujava, logo era lavado e enrolado em panos limpos. Arranjaram uma caixa de sapato e acolchoaram com vários panos para que ele dormisse ali. Ele tentava amizade com os outros cinco gatos que ali moravam, mas a natureza é tão bela e estranha que não se entende o porquê dos gatos mais velhos, de certa maneira, discriminarem os recém-chegados, parecia que sentiam nojo ou ciúmes dele.

A dificuldade de comer aumentou e ele já não andava com freqüência. Maria, então percebeu, que a senhora já estava inteiramente apaixonada por Príncipe e que a vida daquele “serzinho” tão indefeso dependia também do amor dela. Os dois se completavam, e a senhora passava o dia a cuidar dele. Ele ia piorando a cada dia, mas Senhora não o deixava, alimentava-o com uma seringa. E quando ele acabava de tomar o leite, ela se sentia renovada e cheia de esperança, afinal, acreditava que ele ia melhorar.

Um doutor de animais o receitou, mas o quadro permanecia igual. Seguiam-se as horas e ele não saia mais de sua caixinha, a não ser quando fortes dores o atacavam e ele voltava a sujar mais uma toalha. Ele já não tinha vontades, só aflição, a única coisa que ainda era potente eram os seus miados que batiam nas duas mulheres como fortes gemidos. Percebiam que Príncipe não agüentava mais, até quando o paninho que o enrolava era levantado ele gritava. Ele só ficava bem na caixinha ou nos braços de Senhora. Eles se amavam, de um amor que Maria nem acredita ser real.

Maria tinha o peito todo em chagas e pediu a Deus para levá-lo, pois não agüentava mais compartilhar daquele sofrimento. Enquanto isso, Senhora se agarrava ao alimento que de suas mãos, para acarinhá-la, ele ainda sorvia. Para ela, era como se do leite ele brotasse ou renascesse para vida. Seguravam-no nos braços e era difícil saber se ele ainda estava vivo, sua respiração era inerme e seu corpo imóvel. Vendo a cada segundo sua piora, Senhora, quase louca, cobriu o gatinho com uma manta e saiu desesperada em busca de um veterinário que pudesse avaliá-lo e como um deus lhe passasse a fórmula da vida eterna. O veterinário volta a receitá-lo, mas avisa que Príncipe está perdendo a temperatura. Senhora corre para a farmácia mais próxima e compra todos os remédios que ela crê que o devolverão à vida.

Abalada volta para casa e começa a medicá-lo, ele toma a primeira seringa que contem uma substância que irá aliviar a dor, e como transborda de contentamento Senhora. Mas esse verter de alegria é de súbito abalado. Ela com pensamentos e mãos fortemente amarradas se vê obrigada a abrir os olhos. Ele em instantes sucumbirá. Suspira, cambaleia e quando está perto de partir, Senhora o coloca em sua amada e triste caixinha, para não acompanhar seus momentos finais, baixa a tampa e desata a chorar. E como se desespera e grita de dor.

Levanta calmamente a caixinha e de pronto compreende que ele não está mais ali, partiu para o sempre. Corre para o telefone e dá a notícia a Maria. Dispara Maria de volta a casa, já com lágrimas e um choro que vai se tornando compulsivo. Longo é o caminho quando o peito já está lanceado. Por fim, chega Maria, uma mulher que já nasceu destinada a viver por entre os animais. E juntas, enterra no solo fértil o que a alma quebrantou pelo mais intenso amor.






Maria Karina