sábado, 24 de abril de 2010

Ó vida futura! Nós te criaremos.

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Retalhos de Clarice


O que digo deve ser lido rapidamente como quando se olha. Escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.

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Fiquei pensando numa coisa que li recentemente que dizia que o próximo instante é o desconhecido, quem dera possuir os átomos do tempo e capturar o futuro pra que assim ele não fugisse, não escapasse e ficasse sempre no que é hoje. Mas sei que não existe nada mais difícil do que entregar-se ao instante.

Com você vivo sensibilizada pelo arrepio dos instantes. E entendo que no tempo há espaço para o ontem e o hoje. Você faz dos dias um só clímax: vivo à beira.

Fui ao fundo dos momentos. Fotografei cada instante. E ainda não aprendi a não lhe perguntar por que, mesmo sabendo que sempre ao lhe perguntar por que continuarei sem respostas. Então, por vezes, mergulho na inconsequência, pois a liberdade é o meu último refúgio.

O estranho me toma, e lembrar de você sempre me traz um alarde colorido, pois você é antes, é quase, é nunca.

Para você que se acostumou a me lê em silêncio.


Maria Karina



quinta-feira, 15 de abril de 2010

Traiu


Por que você quer me beijar?
Se já tem lábios para amar, viajantes da alma?
Que arrepiam os pelos da pele suada,
ofegando o ar quente, quase molhado, as gramas da primavera?

Ah... Primavera...
Já pensou se ela soubesse deste nosso segredo?

Por que quer me olhar?
Se já tem olhos de Hórus?
Intactos a te desejar?
A mais desejada, cerne das atenções e das alternativas:
És a escolhida!

Por que quer dançar comigo?
Já que possui a mais linda bailarina?
Que levita sobre o cimento, polido, antiderrapante?
Da conturbante e agradável vida.
Para que ela nunca possa cair (mesmo que tenha frieira e calos doloridos).

Não sei, mas, com certeza você me atraiu...
E traiu!

Sem “querer”, eu também traí, atraída por sua essência e particularidades.
Não de pele, ou de carne, muito menos de afinidade...
De laços, de cachos, coloridos e encantados
Foi assim: não foi insano.

Não foi engano.
Quando te beijei
Perto de sua bailarina
Que eu também amava.



Larianne Rocha